terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Missão



Desnudei-me para escrever um poema.
Abracei-me  ao ventre e agradeci ter-me sido jardim de inimitáveis flores.
Moldei os versos e mordi os lábios salpicados pela ternura desses beijos majestosos
dispersos por folhagens coloridas em tonalidades de todos os sangues.
E a vida apoderou-se de mim, vida que dei ao mundo em outras vidas, em outras carnes,
para que de igual forma colorissem outros lugares, e, deixassem testemunho do sabor 
que tem o amor.
Esse sentimento inconfundível que nos entra pela pele e se aloja no peito 
que é o lugar sagrado onde todas as coisas acontecem.
Por momentos apeteceu-me gritar, para que o mundo ouvisse este eco que trago 
alojado na garganta. Apeteceu-me vibrar, entre a impaciência instalada sem permissão, 
e a luz  escorrendo da nascente, ferindo-me as retinas como se me quisesse avisar
que o infinito também se alcança nos dias mais nublados.
Olhei em redor, e voltei a cobrir o corpo. 
Vi à minha volta crescerem árvores, repletas de frutos suculentos.
Com a mão esquerda segurei o livro da vida e erguia-o mais ou menos até ao nível do coração.
No colo caiam-me pétalas que eu acariciava com a outra mão, enquanto os lábios se fundiam,
na missão que ainda estava por cumprir .

(eu)

Imagem - Alina Mayboroda

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Num Campo de Papoilas


Nem sempre

Nem sempre a noite é clara 
deixando perceptível 
o encarnado vivo das papoilas.
nem sempre 
a voz dos pássaros entoa cânticos
onde o silêncio ainda se consome
e a luz lunar prateia os campos, 
e das estrelas saem purpurinas azuis ,
e a espuma das ondas salga a areia fina 
onde deixamos marcados os nossos pés.
e os nossos corpos.

Nem sempre

Nem sempre da janela do meu quarto, 
consigo ver a velha árvore 
a suplicar-me que se faça mutismo, 
a implorar-me o amainar dos ventos
para que, entre as minhas margens 
se contenham as águas. 
Sim as águas. 
onde vagueiam hastes perdidas, 
onde derretem fogos 
ainda por extinguir, no rescaldo dos anos.

Mas hoje,

somente hoje, 
e, desculpem-me a ousadia: 

Faça-se silêncio! 

O ruído é-me nefasto ao gesto, 
e os dedos contorcem-se
enquanto o pensamento vagueia 
entre as sete colinas desse campo 
coberto de vermelho vivo, 
tal e qual um manto de papoilas,
a afirmarem-se vida, 
e a vidraça que nos separa.

Porque hoje,

somente hoje, 
da janela do meu quarto, 
quero ignorar a ponte secular
que desaba em ruínas, 
quero enfeitar a velha árvore 
com estilhaços luminosos 
de bolas de sabão, 
quero agigantar-me e,
extrapolar-me para além do corpo, 
ou da pele,
ignorar as margens,
e quem sabe, 
tornar-me ilha, 
no cimo de uma montanha.

Somente hoje, 
deixem-me pintar de azul -as papoilas-
e apagar tudo o mais, que for dissoluto. 

Quer ao gesto. Quer ao pensamento. 


(eu)

Imagem-Alexander Dolgikh

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Julgamento



Hoje a cidade alevantou-se apavorada. 

No rio flutuava o seio de uma mulher meio coberto por longos cabelos negros, que se misturavam na seda azul colada ao corpo, do vestido que ousou usar, no dia em que resolveu entregar o corpo ao mar.

E assim navegava a náufraga, ao sabor do vento e do julgamento implacável daqueles que haviam atirado a primeira pedra. Viajava pelo caudal em direcção à foz.

Na praça principal, ouviam-se sirenes, como se quisessem interromper um percurso que ela própria ousara escolher: matar-se para não morrer!

Nos lábios azulados levava o sabor da fome de justiça, e o ventre parecia inchado de tanto sofrer.

A multidão continuava a aumentar, o espectáculo era digno de se ver . A chuva caía miudinha como se quisesse abençoar a suicida, e conceder-lhe o perdão por tamanha atrocidade. 

Havia rumores espalhados pela cidade, que mostravam bem a falta de equidade dos conterrâneos.

Afirmavam que era jovem, apesar da placidez e anonimato de um rosto cinzelado.

Houve até quem conseguisse apreciar a sua beleza, na fugacidade da pele entregue ao destino das águas.

E assim continuou o caminho, tendo como único carinho as caricias do vento e o resto dos sonhos que com ela adormeceram. 


Na manhã seguinte, o rio galgou as margens e um relâmpago abateu-se sobre a terra ...iluminando-a...


(eu)

Imagem- retirada da net

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Escuridão



Tardam em mim as vielas iluminadas, 
onde permanecem silêncios adormecidos
nos sonhos da noite.

Nenhuma lua se quer amante do vento
a soprar resquícios de outros tempos.
ou de outras horas.

Que desconforto!

Escondo entre as mãos o rosto enfadado
enquanto trauteio uma escala de dó, e 
espero que a pele se insinue 
aos dedos.

Que desilusão!

Nem um vislumbre!

E o verso morre só, 
desiludido, 
calcinado pelo atrito da mente,
na escuridão 
que se anuncia 
sempre 

que o olhar se desfaz...


(eu)

Imagem-Ida Budetta

sábado, 4 de janeiro de 2014

Escrevo-te



Gosto tanto das palavras que se estendem para além da pele.
Gosto daqueles beijos que se excedem depois das margens de probabilidades já acrescidas.
Gosto tanto quando o tempo não passa de um mero pretexto, onde consolidamos gestos que pensávamos gastos.
E assim, nas águas do meu rio, embalo os corpos, cujas mãos solitárias conseguem alcançar o infinito dos lábios!

E beijo-as!

Então... fala-me desse carinho, com que me desnudas a alma,
onde quase tudo se resume a palavras mais ou menos ilegíveis,
saboreadas sobre a minha carne.

Depois, quero saber da frialdade e placidez do sorriso desabitado,
do esforço para que o rosto não se torne granítico,
onde os beijos e os gestos ficam cristalizados.

Quero saber tanta coisa...

Mas, hoje, deixa apenas que as tuas palavras se entreguem ao desejo dos meus sonhos.
E este olhar com que te vejo, parecer-te-á agradecido
por esta história - que só tu e eu sabemos ler.

(eu)



                                                                               

Imagens- Liu Yuanshou

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Trinta e Dois Anos


Longe vão os anos
em que te encontrei
minha alma gémea 
por quem me apaixonei.

Dentro de mim fervilhava 
um coração encoberto pelo frio do inverno
aquecido sobre um leito de ternura e afecto,
onde começava uma vida que se estendia,
para te amar mais... e mais, e mais...

tu sabes:

- mais até do que podia-.

Era Janeiro e acendia-se a cor da paixão,
nas minhas rosas, no laço que puseste ao pescoço, 
e no anel dourado que colocaste na minha mão.

Passaram anos e anos de uma vida cristalina, 
edificada, afortunada, abundante:
em amor, em afectos, em sorrisos , em alegrias.

As rosas não murcharam e o jardim continua a florir,
o laço alongou-se , o amor cresceu,
mais flores nasceram, mais estrelas luziram.

-Só o anel dourado da minha mão se perdeu-.

-por descuido meu-

Não, não me esqueci dele, nem do dia em que o recebi 
sobre dois corações entrelaçados,
e de olhos embaciados pela respiração do teu beijo, 
olhei-te já despossuída do tule branco que me servia de esconderijo,

E prometi:

amar-te, amar-te , amar-te...

tu sabes:

-amar-te sempre, amar-te mais,
e fazer do amor o meu (e)terno regozijo-

Agora preciso procurar o anel dourado,
nos labirintos do poema,
pois só assim, ouvirás a voz do meu amor, 
e deixará de fazer sentido o eco inaudível 
de alguma presumível dor.

Então... de dedos despidos e corpo nu, 
como as aves que sobrevoam os céus , 
em busca dele voarei,

minha alma gémea
por quem me apaixonei.

(eu)

Fotografia: Alfred Cheney Johnston